O fim da produção para as ruas da Yamaha R1 na Europa pode estar encerrando a história de uma das motocicletas mais emblemáticas de todos os tempos, que mais uma vez redefiniu o que era uma superbike.
Para entendermos a importância da R1, precisamos, como sempre, voltar no tempo, no caso ao final dos anos 1990. O motociclismo vivia na época um dos seus momentos mais interessantes, com as motos esportivas ficando mais leves, potentes e avançadas a cada ano que passava.
De um lado, as fabricantes disputavam quem faria a motocicleta mais veloz de todos os tempos, disputa essa que gerou até um acordo de cavalheiros posterior. De outro, elas brigavam para ver que fazia a moto mais rápida, aquela que venceria todas as corridas e títulos importantes.
A Yamaha não estava bem em nenhum dos lados. Desde o lançamento da FZR 1000 Genesis em 1986, com seu revolucionário chassi Deltabox, a marca dos diapasões parecia alheia ao progresso que Honda, Suzuki, Kawasaki e até Ducati haviam feito.
Para enfrentá-las, havia apenas a YZF 1000R Thunderace, que era uma FZR 1000 atualizada com peças de diversas motos existentes. Uma resposta preguiçosa, convenhamos. E o mercado respondeu na hora, ou seja, com indiferença. Era preciso fazer mais, muito mais.
Naquela época de zero eletrônica, existiam dois tipos de motos esportivas: as ágeis 600/750cc e as potentes 1000cc. A Honda CBR900RR foi a primeira a conseguir reunir o que as duas tinham de melhor e era um sucesso há cinco anos. A nova Yamaha deveria ir pelo mesmo caminho. A meta era muito simples: ser mais potente e mais leve que a Fireblade.
Tudo começou no início de 1996 pelo motor de 998 cm³, que era um novo projeto baseado em torno do conceito Genesis (cabeçote de cinco válvulas por cilindro inclinados para a frente) e da válvula de escape EXUP, ambos já presentes na FZR 1000, sistema que liberava mais potência em altos giros sem sacrificar o torque em baixa.
Se o motor não tinha novidades, a equipe liderada por Kunihiko Miwa (que tinha o curioso apelido de Sr. Sem Compromisso) teve para o câmbio uma ideia genial: reposicionar o eixo principal acima, em vez de alinhado com o eixo do virabrequim. Esse design inovador originou um motor muito mais compacto e permitiu a adoção de um chassi menor.
Outro benefício dessa caixa de câmbio – que ficou conhecida como “empilhada” – foi que a motocicleta poderia usar um braço oscilante mais longo, para maior tração, ao mesmo tempo que mantinha uma distância entre eixos mais curta. As especificações iniciais eram 150 cv a 10.000 rpm e 177 kg.
Apresentada no Salão de Milão de 1997, a primeira YZF-R1 da história imediatamente recebeu aclamação mundial por seu design contemporâneo que ficava muito bem nas cores branca e vermelha, que a Yamaha utilizava nas pistas. Uma opção em azul, no entanto, também estava disponível.
As coisas ficaram ainda melhores quando a imprensa especializada pôs as suas mãos na R1. Não apenas a potência era ótima frente às rivais, como o torque era animador e a geometria muito nítida, proporcionando uma dirigibilidade fantástica, melhor que todas as rivais da época.
A CBR900RR, por exemplo, tinha a mesma dirigibilidade, mas era quase 20 cv menos potente; a nova Ninja ZX-9R tinha a mesma potência, mas não o mesmo equilíbrio. A Ducati 996 era só um pouquinho mais ágil, mas não tinha a mesma aceleração insana.
“Tive a sorte de pilotar a maioria das superbikes de corridas feitas na última década e esta é a mais próxima que você encontrará nesse bastão de medição. Talvez a Yamaha deva chamá-la de ‘R-Won’“, disse o jornalista norte-americano e instrutor de pilotagem Nick Ienatsch, ao testá-la em abril de 1998.
As primeiras atualizações vieram em 2000 e não foram poucas: mais de 150 modificações, de acordo com a conta da Yamaha. Além de tornar o chassi mais rígido, os engenheiros de Iwata deixaram o motor menos áspero, livraram outros 2 kg e colocaram uma carenagem ainda mais afiada, com cores mais em sintonia com a virada do milênio.
Para o público atual, 150 cv pode parecer uma potência risível, mas tente domar isso sem controle de tração! A Yamaha também deslocou o peso mais para a frente e a suspensão foi revisada, transformando a R1 em uma fera apenas um pouquinho menos assustadora ao comprador comum, aquele que nunca havia estado em uma pista de corridas.
Para 2002, a Yamaha atualizou o chassi Deltabox II (agora preto) e reposicionou o motor, que ganhou um novo sistema de injeção eletrônica, bem mais avançada que a das concorrentes. Para melhorar a resposta no acelerador, pistões a vácuo foram introduzidos.
Além disso, a suspensão foi inteiramente revista, assim como o seu design que ficou menos radical e passou a apostar no requinte e na elegância. O resultado foi uma das gerações mais neutras e suaves de todas. A R1 por excelência havia chegado.
A concorrência, é claro, não havia ficado parada. Mas a grande adversária da Yamaha R1 nessa época não era a Fireblade e sim a formidável Suzuki GSX-R1000, que irrompeu a cena quando surgiu 2001 e seguia a mesma receita, muitas partes em comum com a GSX-R750 e chegava a 160 cv.
Agora, o mercado de motos de 1 litro ganhava todas as manchetes da mídia especializada. Ainda estávamos longe da multiplicidade de estilos que temos hoje. As superbikes eram a vitrine de um público grande que queria esportividade, mesmo que nunca usasse o que a máquina pudesse fazer de fato.
Em 2004, a Yamaha voltou à prancheta para a quarta atualização da R1. Seguindo as tendências estilísticas da época, a motocicleta ganhou escapamentos sob o assento, freios radiais e uma carenagem ainda mais pontiaguda. Para muitos, essa é a R1 mais bonita até hoje.
Um novo motor, de grande diâmetro e curso curto, com o tradicional cabeçote de cinco válvulas por cilindro foi desenvolvido e deu o troco na Suzuki ao oferecer 172 cv. O peso foi reduzido para 172 kg. Essa foi primeira moto de produção a atingir a mágica relação peso/potência de 1:1.
Essa também foi a época de maior glória para a Yamaha em termos esportivos. Não apenas a R1 estava na ribalta, como a marca dominava a MotoGP com Valentino Rossi e a sua versão puramente esportiva, YZR-M1. Carismático, o piloto italiano ajudou a vender muitas motos para a marca.
Na atualização de 2006, a Yamaha alterou a rigidez do chassi, adicionou um braço oscilante 20 mm mais longo (empurrando o peso da moto 1% mais para a frente), além de liberar outros 3 cv. Se você não fosse um piloto profissional provavelmente não notaria as mudanças.
Para os pilotos profissionais, no entanto, a Yamaha preparou a primeira versão dedicada, a YZF-R1 SP. Limitada a apenas 500 unidades na Europa e outras 500 nos EUA, ela vinha com embreagem deslizante, suspensão Ohlins e rodas Marchesini de alumínio forjado.
Em busca de giros mais vívidos em baixas e médias rotações, a Yamaha abandonou o cabeçote de cinco válvulas por cilindro em 2007 por um de quatro válvulas mais convencional, além de introduzir funis de admissão de comprimento variável. Essa também foi a primeira 1000cc a vir com acelerador ride-by-wire na história (depois da YZF-R6 em 2006).
A Honda demorou para responder, mas quando respondeu… a CBR1000RR já havia equilibrado a balança quando surgiu em 2004, mas a geração de 2008 (SC59) se tornou a referência em equilíbrio, potência e design. A Yamaha precisava dar uma resposta, o que foi feito em 2009.
Um dos grandes trunfos da YZR-M1 de MotoGP, o virabrequim “crossplane” faz com que os quatro pistões se movam em pares, espaçados de forma desigual, criando uma ordem de disparos em que um está sempre empurrando. Isso aumenta consideravelmente o torque em baixas e médias rotações.
Alguns não gostaram da mudança, pois o ronco do motor mudou drasticamente, ficando menos agudo e mais grosso, quase como um V8. A carroceria também foi totalmente revista, ficando bem mais parruda, perdendo a lente que os envolvia os faróis e ganhando aquela expressão de olho.
De qualquer maneira, a YZF-R1 2009 foi um enorme sucesso de vendas no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Não era difícil vê-las nas concessionária, época, em que o motociclismo nacional explodiu, com muitas motos e fábricas novas vindo para cá.
Mas os tempos estavam mudando. Pela primeira vez, as superbikes japonesas tinham uma máquina alemã de respeito. Quando surgiu em 2010, a BMW S1000RR impressionava pela potência, manobrabilidade e, acima de tudo, eletrônica. O futuro havia chegado e envolvia fios e sensores…
A MV Agusta resolveu entrar na brincadeira com a F4 312. A Ducati respondeu com a 1199 Panigale, que vinha com iluminação completa de LED e gerenciamento eletrônico do freio-motor. Com o Japão sentindo muito a crise financeira de 2008, as costas da Yamaha ficaram contra a parede.
Não por acaso, as novidades na R1 começaram a ficar mais espaçadas. A atualização de 2012 apresentou o primeiro sistema de controle de tração para motos esportivas da empresa e… isso foi tudo. Além de novos pedais, ajustes na ECU e uma dianteira remodelada, a moto permaneceu inalterada.
É bom que se diga que a R1, nessa época, ainda era uma máquina muito boa. Graças ao motor crossplane, seis estágios de controle de tração e dirigibilidade irrepreensível, a motocicleta ainda era top of the game e oferecia uma experiência de condução única.
Em 2014, a Yamaha contra-atacou mais uma vez com uma nova geração. Apresentada no Salão de Milão por Valentino Rossi e Jorge Lorenzo, a nova YZF-R1 trazia faróis escondidos, partes em fibra de carbono, titânio e magnésio e principalmente uma eletrônica de primeira.
A relação peso/potência de 1:1 foi mantida com seus 200 cv e 199 kg de peso. Graças a uma IMU de seis eixos inerciais, a nova R1 vinha com ABS, controle de largada, controle de tração, antiwheelie, hoje corriqueiros, mas inéditos na ocasião.
A Yamaha também disponibilizava – agora em tempo integral – uma versão dedicada para as pistas de corrida. Assim nascia a YZF-R1m, com suspensões eletrônicas Öhlins e registro de dados com GPS integrado capaz de “upar” novas configurações a partir de um smartphone.
Nas pistas, a nova R1 se mostrou um sucesso absoluto, vencendo as 8 Horas de Suzuka por quatro anos consecutivos e numerosos títulos no Mundial de Endurance (EWC), WorldSBK (abaixo) e diversos campeonatos nacionais competitivos, como o britânico BSB.
A atualização foi boa, mas daí em diante, elas seriam cada vez mais raras e discretas. O aniversário de 20 anos do modelo, em 2017, passou quase despercebido, exceto por um quickshifter melhorado, um antiwheelie revisado, uma nova suspensão eletrônica Öhlins e adequação ao Euro5, limites de emissões que ficavam cada vez mais severos.
Em 2019, a última atualização profunda foi apresentada. A R1 ganhou um novo cabeçote e um novo sistema de admissão completo, novos bicos injetores, garfos KYB de 43mm com novas configurações de amortecimento e painel digital TFT. A potência final permaneceu inalterada: 197 cv a 13.500 rpm, pouco comparado com os 230 cv que a Ducati Panigale V4S disponibilizava.
Em 2020, a sua irmãzinha, YZF-R6, foi descontinuada para as ruas por não se enquadrar aos índices de emissões do Euro5 e só seria disponibilizada em uma versão pra as pistas. Era um prelúdio para o anúncio da R1 dessa semana. Para adequá-la à próxima fase, o Euro5+, a Yamaha teria que fazer uma série de mudanças no motor, mudanças que julgou não valer mais a pena realizar.
O que levou a Yamaha a optar por essa estratégia? Muita coisa mudou no mundo desde os dias de glória da R1. São motos com alto nível de tecnologia, caras de se desenvolver e de vender. O público atual também tem muito mais opções para escolher. Mesmo a vida útil de um produto é naturalmente cíclica. De qualquer forma, a ela continuará a ser vista no seu verdadeiro lar, as pistas de corrida, apreciada por quem realmente entende do assunto. Talvez seja melhor assim.