Você sabia que uma das maiores motocicletas do mundo é brasileira? Ela se chamava Amazonas, vinha com o motor do Fusca 1600 e chegou a ser exportada e testada por uma revista norte-americana.
Para entendermos as circunstâncias que levaram à criação da Amazonas, precisamos de contexto. A Honda se instalou em Manaus em 1971, seguida da Yamaha em 1974, responsável por oferecer a primeira motocicleta nacionalizada, a pequenina RD50. Em outras palavras, nossa indústria motociclística ainda estava engatinhando.
Naquela época, quem tinha cacife para comprar motos maiores do que uma 125cc ainda não encontrava grandes opções no mercado nacional. Modelos importados como Honda CB750F e Kawasaki Z1 eram para poucos, pouquíssimos. E as portas definitivamente se fecharam em abril de 1976.
Naquele mês, o presidente Ernesto Geisel efetuou o Decreto-lei 1.455/1976, que transformava os veículos em mercadorias de importação proibida dali em diante. O objetivo era estimular a indústria nacional, mas o que aconteceu de fato foi mais de uma década de atrasos tecnológicos e uma geração inteira impedida de ver os maiores lançamentos internacionais.
Com poucas opções disponíveis e a situação econômica do país em espiral descendente, a saída foi criar novidades com o que havia de disponível por aqui. Esse era o caso dos mecânicos amigos paulistanos Luiz Antonio Gomides e José Carlos Biston, de 28 e 29 anos respectivamente. E o que podia ser mais farto no Brasil do que peças de VW Fusca?
“Eu tinha uma Harley-Davidson e um Fusca. Todas as vezes que eu saia de Harley sempre ocorriam pequenos problemas. Sabe como é, quebrava uma corrente, descarregava a bateria, etc. E sempre quem ia me socorrer era o meu fusquinha“, comentou Gomides. “Ai eu pensei: ‘vou construir uma moto com o motor do Fusca!‘”
Gomides e Binston começaram o projeto no início de 1976. Como tudo naquela época, as experiências funcionavam na base da tentativa e erro, varando as madrugadas em busca de soluções sem o ferramental adequado. Retirado do Fusca, o motor de quatro cilindros opostos e 1.584 cm³ foi adaptado a um novo chassi, com partes de Harley-Davidson e de uma Indian 1200 1950. Do carro de Gomides também vieram diversas outras partes, como o câmbio, dínamo, bateria e sistema elétrico. Dois carburadores Solex foram montados.
Para segurar tanto peso, a suspensão precisou de atenção especial, com duas molas de Kombi extras montadas na traseira e outros dois amortecedores de direção (do Fusca) funcionando em conjunto com as bengalas dianteiras. O painel veio de um Chrysler Esplanada, enquanto que os discos de freio eram do Corcel. As pinças são da Variant e o cilindro mestre também do Fusca. Com tantas peças VW, não demorou muito para que o modelo ganhasse o apelido de “MotoVolks” entre os amigos.
Como era de se esperar, as experiências iniciais foram aterrorizantes. Com o motor rendendo 56 cv e quase 11 kgf.m de torque a apenas 3.000 rpm, a MotoVolks tinha uma tendência forte à inclinar-se quando acelerada (efeito giroscópio), o que foi amenizado diminuindo-se o volante do propulsor. Aos poucos, peças artesanalmente concebidas foram surgindo.
O maior desafio foi adaptar o câmbio. Os dois amigos bolaram um sistema para que não houvesse confusão nas trocas, com a ré recebendo uma útil alavanca no lado direito (eram 330 kg para manobrar), enquanto que as outras marchas estavam no pé e do lado esquerdo. A potência era transferida via corrente, método muito mais barato que os eixos cardã das motos mais sofisticadas. A parte elétrica do Fusca permitiu também o uso de partida elétrica.
Gomides e Binston não esqueceram do “design”. Um novo assento em degraus foi especialmente confeccionado, ao melhor estilo Easy Rider. O tanque de 24 litros tinha inicialmente o formato de um caixão, incluindo as alças, além de ser decorado com caveiras, o que completava o clima sombrio. Os pneus vinham da Harley-Davidson, medidas 560×16.
Os dois mecânicos continuaram refinando a motocicleta durante 1977 até conseguirem a aprovação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP para que a motocicleta pudesse ser licenciada na categoria especial. Com a confiança nas alturas, os amigos mudaram-se para uma nova instalação na Avenida Dr. Salomão Vasconcelos, 668. Lá, segundo consta, mais três MotoVolks foram construídos, mas seus paradeiros permanecem desconhecidos.
A MotoVolks saiu na Revista Duas Rodas em julho de 1977. Logo depois, o tradicional grupo paulistano Ferreira Rodrigues comprou o projeto e criou, no bairro da Penha (SP), uma nova marca. Em 15 de agosto de 1978, nascia oficialmente a Amazonas Motocicletas Especiais (AME), assim batizada para homenagear o maior estado brasileiro, dono também da maior bacia hidrográfica do mundo. Com suas dimensões colossais, a moto ganhou a denominação AME 1600.
Com as condições financeiras estáveis do grupo Ferreira Rodrigues – que era uma auto importadora e empresa de autopeças – a Amazonas AME 1600 foi refinada. A transmissão original do Fusca foi substituída pela mais eficiente do Gol 1.6 (com a relação do SP2), os discos de freio passaram a ser do Chevette, um painel mais completo veio do Passat e o tanque de combustível foi aumentado para incríveis 40 litros.
Na ciclística, um quadro apropriado foi projetado, possibilitando o surgimento de versões diferentes, como Turismo Luxo, Esporte, Esporte Luxo e Militar Luxo. As suspensões agora eram de fabricação própria. A embreagem, inicialmente bastante dura, passou a ter acionamento hidráulico e, para conter o calor do motor, capas foram instaladas nas laterais.
Com largos pneus, para-lamas espalhafatosos, bolha pronunciada, alforjes laterais e o farol do caminhão Mercedes-Benz 608 D, a motocicleta cresceu ainda mais em tamanho e ficou bem diferente do primeiro protótipo. De acordo com seus idealizadores, isso foi necessário para o chassi ficar em coerência com as dimensões do motor VW. Por outro lado, os comandos do guidão foram especialmente desenvolvidos pela equipe. Assim a Amazonas AME 1600 estava pronta para ser comercializada.
A imprensa especializada internacional reagiu mais com curiosidade sobre como seria pilotar uma moto com motor do VW Beetle do que com entusiasmo. A prestigiada revista norte-americana Cycle World testou um modelo especial com cilindrada aumentada para mais de 2.000 cm³ em novembro de 1985 e foi implacável em suas impressões: “exageradamente lenta, desajeitada com pneus quadrados e uma suspensão inexistente, um desastre para qualquer um familiarizado com motocicletas modernas.”
A mídia brasileira foi mais branda, mas não isentou a moto de críticas, como a Revista Duas Rodas, que testou uma unidade de pré-série em setembro de 1978: “O comportamento geral lembra bastante as Harley 1200cc“, comparou o jornalista Josias Silveira. Motor e câmbio eram novos e vinham com garantia, a reportagem destacava.
“Para manobras e trânsito intenso, é necessário um piloto razoavelmente atlético. Em estradas asfaltadas, a Amazonas é mais confortável. O motor tem bastante torque, mas é pouco elástico“, avaliou. O peso variava de 275 kg até mastodônticos 380 kg conforme a versão. Entretanto, de acordo com a Amazonas, a motocicleta era capaz de atingir 170 km/h e fazia de 0-100 em menos de dez segundos. O consumo era condizente: 11 km/l na cidade e 16 Km/l na estrada.
Conforto e posição de pilotagem, por sinal, eram pontos de destaque na Amazonas, desde que tudo funcionasse como deveria, como afirma o jornalista Geraldo “Tite” Simões: “Uma vez, perdi a tampa do tanque de gasolina que saiu voando“, relembra. Para o cliente convencional, no entanto, não havia nada no Brasil que chamasse mais atenção.
“Como a moto era produzida sob encomenda, era comum aparecer na fábrica o Durval [Gerente Comercial] junto com o cliente que, ao ver o carinho e capricho com que os funcionários dispensavam em cada moto na bancada, se apaixonava irremediavelmente pelo grande e sedutor dinossauro do asfalto”, relembra Marcos Pasini, que trabalhou na AME no início dos anos 1980.
“Depois disso, o telefone não parava de tocar: ‘Já está pronta?’ ou ‘posso ir ver como ela está indo?’. Consigo lembrar, até hoje de muitos deles que, pela sua persistência em tentar acelerar o processo de montagem das motos acabavam se tornando nossos amigos”, relembra Pasini. A capacidade produtiva era de apenas 20 unidades mensais.
Apesar de não ser barata – custava o equivalente a seis Honda CG125, de acordo com a revista Moto Show em 1983 – todo mundo adorava a Amazonas, em um misto de comédia e carinho. Um dos principais clientes foi a Polícia Rodoviária Federal, que substituiu suas cansadas Harley-Davidson pela AME 1600. Hussein Assad, presidente da companhia petrolífera nacional do Kwait encomendou um exemplar. No Japão chegou a ser capa de revista e algumas unidades foram exportadas para os Estados Unidos, França, Alemanha e Suíça.
Apesar do interesse, a AME não fez grandes alterações no projeto ou ofereceu motocicletas diferentes. Em 1982, a Amazonas ganhou opção a álcool, um ligeiro facelift, com dois faróis de milha retangulares embaixo do principal e a adição de um encosto para o passageiro. As cores chamativas pareciam aumentar ainda mais seus 2,24 metros de comprimento e 1,67m de entre-eixos.
Em 1986, o grupo Ferreira Rodrigues vendeu a AME para Guilherme Hannud Filho, então um jovem empresário com apenas 31 anos. Oito unidades de uma versão side-car chegaram a ser fabricados antes de a produção ser definitivamente encerrada em 1988. Cerca de 450 unidades foram produzidas.
No início dos anos 90, uma nova motocicleta com motor de Fusca chamada “Kahena ST 1600” foi anunciada pela empresa Tecpama, sediada em São Paulo. Ao contrário da Amazonas, o visual não era custom e sim esportivo. Mas não havia mais lugar para veículos fora-de-série como esses. Para nossa alegria, as importadas estavam de volta!
Ainda em posse de Hannud Filho, o nome Amazonas ressurgiu em 2009 através de uma nova parceria com a chinesa Loncin. Contudo, os modelos AME110, AME125, AME150 e AME250 não tinham nada em comum com a grandiosa AME 1600. Apesar do bom acabamento geral, as motos não duraram muito tempo no mercado.
A Amazonas ainda impressiona. Não é difícil vê-la em grandes eventos de motos e, como suas peças são todas fartas e dimensionadas, chegam rodando em qualquer canto do país sem maiores problemas. Em 2000, o lendário aventureiro Gregory Frazier viajou pelo Brasil em uma Amazonas para entender o fascínio que gerava debaixo de seu estilo desajeitado.
Hoje em dia, o interesse pelo modelo ressurgiu e na internet pode-se encontrar desde unidades originais a customizadas, com injeção eletrônica e/ou cilindrada aumentada. Os preços podem chegar a valores bem surpreendentes, dependendo do estado. Sem dúvida, um dos capítulos mais pitorescos de nossa história.
Amazonas AME 1600 – Ficha Técnica
Motor – 4 cilindros opostos, 4 tempos, refrigerado a ar; comando no bloco, 2 válvulas por cilindro. Diâmetro e curso: 85,5 x 69 mm. Cilindrada: 1.584 cm³. Taxa de compressão:7,2:1. Potência máxima: 56 cv a 4.200 rpm. Torque máximo: 10,8 m.kgf a 3.000 rpm. Dois carburadores. Partida elétrica.
Câmbio – 4 marchas mais ré; transmissão por corrente.
Freios – Disco duplo dianteiro, traseiro a tambor ou disco
Quadro – Berço duplo em aço.
Suspensão – Dianteira, telescópica; traseira, duas molas.
Pneus – Dianteiro e traseiro, 5,00-16.
Dimensões – Comprimento, 2,24 m; largura, 1,05 m;
entre-eixos, 1,69 m; capacidade do tanque, 30 l; peso líquido, 384 kg.
Desempenho – Velocidade máxima, cerca de 140 km/h;
aceleração de 0-100 km/h em 9 segundos.